Nas últimas duas décadas, o cluster calçadista sofreu um intenso processo de internalização dos custos ambientais de suas operações. Fabricantes de calçados, de componentes para calçados e curtumes fizeram elevadíssimos investimentos em tecnologias e práticas de gestão de resíduos, tratamento de efluentes, logística reversa, dentre outros.
O referido processo – que afeta todas as empresas do setor que têm operações industriais no território brasileiro – sem dúvida acaba por impactar no preço final dos produtos, aumentando-o. Assim, evoluímos em termos de preservação ambiental, porém, perdemos em termos de competitividade no mercado internacional.
A volumoso conjunto de leis e normas ambientais criadas que acabou por onerar a indústria brasileira, por sua vez, carece de mecanismos capazes de promover a internalização dos custos ambientais também pelos fabricantes de fora do País e importadores. Essa realidade é duplamente prejudicial, pois ofende ao meio ambiente e à econômica nacional.
Ora, milhões de toneladas de produtos, em especial chineses, são importados para o Brasil continuamente e, ao contrário das indústrias nacionais, que arcam com ônus de logística reversa e destinação ou disposição final ambientalmente adequada, os resíduos pós-consumo de tais produtos permanecem aqui, legando o prejuízo à sociedade, e não ao poluidor.
A ausência de responsabilidade dos fabricantes estrangeiros sobre esses resíduos pós-consumo oferecem riscos à saúde e à vida das pessoas, dos animais e à preservação dos vegetais. O descarte deste produtos, após sua vida útil, vai causar prejuízos ao nosso solo, águas superficiais e subterrâneas, bem como à qualidade de nosso ar.
É possível, entretanto, equilibrar esta balança. O GATT – General Agreement on Tariffs and Trade, tratado de livre comércio do qual o Brasil é parte signatária, autoriza, ao art. XX – Exceções Gerais, alínea “b”, a aplicação de medidas “necessárias à proteção da saúde e da vida das pessoas e dos animais e à preservação dos vegetais”.
Além disso, autoriza o GATT, na alínea “g” do mesmo art. XX, a aplicação de medidas “relativas à conservação dos recursos naturais esgotáveis, se tais medidas forem aplicadas conjuntamente com restrições à produção ou ao consumo nacionais”. A OMC – Organização Mundial do Comércio possui diversos registros de casos relacionados à essas exceções.
O que se está a propor é que a importação, especialmente de calçados, componentes para calçados e couro, ou qualquer outro produto que resulte em resíduo pós-consumo, seja onerada, de forma que os custos ambientais gerados em decorrência desses produtos pós-consumo seja internalizado, recaindo sobre os poluidores, e não sobre a sociedade brasileira.
Essa perda de competitividade do cluster calçadista nacional é maior em relação à República Popular da China, pois se soma a outros fatores de desequilíbrio, como a prática de dumping. Não é à toa que foi aplicado direito antidumping definitivo, por meio de alíquota fixa de US$ 13,85/par, por meio da Resolução Nº 14/2010, da Câmara de Comércio Exterior.
O direito antidumping aplicado por meio da norma supramencionada venceu em março de 2015, após 05 anos de validade. Por meio da Circular Nº 9, de 24 de fevereiro de 2015, a Secretaria de Comércio Exterior prorrogou pelo prazo de 12 meses o direito antidumping, prazo estipulado para a análise da revisão da aplicação da medida.
Não restam dúvidas de que o direito antidumping deve ser continuado, em prol da indústria calçadista nacional. Mas, se isso não ocorrer e o desequilíbrio entre a indústria nacional e a da República Popular da China se potencializar, uma alternativa de buscar a justa equiparação de forças está na seara ambiental.
Diferentemente da aplicação do direito antidumping, a efetivação dessa oneração às importações não é de competência da Câmara de Comércio Exterior. Diversos outros caminhos são possíveis, como a criação de um tributo (taxa) sobre essas operações, ou a exigência de uma licença ambiental específica, e sua respectiva taxa de licenciamento.
As medidas dependem de movimentação legislativa, que pode ser impulsionada pela bancada que representa o cluster calçadista junto ao Congresso Nacional. Elas podem, inclusive, não se restringir à China, mas abranger importações oriundas de outros países, eis que não é apenas o resíduo pós-consumo dos produtos chineses que permanece por aqui.
Os recursos obtidos com a oneração das importações de calçados, componentes para calçados e couro, com viés ambiental, devem ser destinados à preservação e promoção do meio ambiente ecologicamente equilibrado. O mais indicado é rateá-los entre os Municípios, sobre quem recai o ônus da coleta e tratamento de grande parte dos resíduos e efluentes.
Enfim, a indústria nacional – importante fonte de empregos e renda no País – tem de traçar estratégias e executar ações para frear a forte crise econômica, gerada em parte por esses desequilíbrios comerciais, como a internalização de custos ambientais. Assim, promover-se-á a sustentabilidade não só ambiental, mas também econômica e social.
Elias da Silveira NetonAdvogado, especializado em Direito Ambiental pela UFRGSnnDiretor da Ecovalor Consultoria em Sustentabilidade