1. Histórico da legislação e da gestão de resíduos sólidos no País
Durante quase 20 anos, desde a proposição do Projeto de Lei (PL) N° 203/1991 no Senado Federal, realizou-se um amplo debate sobre a gestão de resíduos sólidos no País, com a participação de diversas instituições públicas e privadas. O resultado desse processo foi consolidado com a publicação da Lei Federal N° 12.305, em 02 de agosto de 2010, que instituiu a então nova Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).
Uma das principais mudanças promovidas pela PNRS foi a instituição da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, incluindo o recolhimento dos produtos e resíduos após o uso, abrangendo os fabricantes, importadores, distribuidores, comerciantes, consumidores etitulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos.
Historicamente – antes da publicação da PNRS – a responsabilidade pelo recolhimento dos resíduos após o uso esteve concentrada nas mãos do Poder Público, por meio do serviço público de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos. A mudança promovida pela nova Política, que passou a compartilhar essa responsabilidade com o setor privado e os consumidores, se deve ao insucesso do modelo anterior.
Enquanto a responsabilidade esteve com o Poder Público, por mais que fossem cobradas taxas a título de contraprestação pelo serviço, os resultados foram desastrosos. Mais de 3 mil lixões se consolidaram no País, com resíduos sendo despejados irregularmente, causando danos ao meio ambiente e à saúde pública. Os prejuízos também se estendem aos aspectos sociais e econômicos.
Milhares de pessoas – incluindo crianças – catam materiais recicláveis nos lixões, em condições insalubres e degradantes. Devido à falta de conscientização ambiental da população, muitos resíduos com potencial de reciclagem, por não ser separados e submetidos à coleta seletiva, são contaminados por outros materiais, deixando de ter valor comercial.
Foi objetivando reverter o quadro ambiental, social e econômico supracitado que a legislação foi alterada, após amplo debate. Um dos instrumentos para a concretização dessa mudança é justamente a chamada “logística reversa”. Por meio dela, fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes foram obrigados a instituir sistemas para o retorno dos produtos após o uso pelo consumidor.
A responsabilidade compartilhada e a logística reversa impostas pela PNRS foram inspiradas no modelo adotado pela União Europeia, por meio da Diretiva 94/62/CE, que entrou em vigor em 31 de dezembro de 1994. A lógica que impera nesse sistema é a de PAYT – Pay-As-You-Throw, algo como “pague proporcionalmente ao que você descarta”, estimulando as partes a gerar menos para, consequentemente, pagar menos.
Passados quase 9 anos da publicação da PNRS, a recente intensificação da fiscalização pelos órgãos ambientais quanto ao seu cumprimento, tem levado parte da sociedade civil a criticar o modelo de responsabilidade compartilhada. Porém, a volta ao modelo anterior – responsabilidade concentrada com o Poder Público – ou o desenvolvimento de um novo modelo, dependem de alteração da Lei / Política.
Enquanto a PNRS estiver em vigor tendo a responsabilidade compartilhada como fundamento, restará à sociedade civil, incluindo as empresas e os consumidores, cumprir o que determina a Lei, sob pena de sofrer responsabilização administrativa, cível e/ou criminal, conforme previsto na legislação. Eventuais ações políticas visando a modificação da Lei e questionando a política adotada podem ocorrer paralelamente.
2. Acordo Setorial e Regulamento sobre Logística Reversa de Embalagens
Conforme determina a Lei (PNRS), os sistemas de logística reversa devem ser instituídos de forma independente do serviço público de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos. Além disso, o início do cumprimento dessa obrigação foi vinculado à publicação de regulamento, acordo setorial ou termo de compromisso entre o poder público e o setor empresarial, isto é, após a definição das regras do sistema.
Inicialmente, a PNRS elencou 06 (seis) produtos ou embalagens considerados de maior potencial poluidor, como, por exemplo, as pilhas, baterias e pneus, os quais tiveram prioridade na estruturação e implementação de sistemas de logística reversa. Desde o princípio, porém, a Lei previu que os sistemas devem ser expandidos a outros produtos e embalagens.
Em 2012, 02 anos após a entrada em vigor da PNRS, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) publicou edital de chamamento para a elaboração de acordo setorial de embalagens em geral. O objetivo foi o de implementar a logística reversa desses materiais, de forma a tornar efetivo o compartilhamento da responsabilidade, já que antes eles eram em regra submetidos à coleta pelo serviço público, exclusivamente.
As embalagens alvo do chamamento público foram aquelas que compõem a fração seca dos resíduos sólidos urbanos ou equiparáveis, podendo ser compostas de papel e papelão, plástico, alumínio, aço, vidro e embalagens cartonadas longa vida. Essas embalagens podem ser oriundas dos mais variados segmentos industriais, como alimentos, bebidas, cosméticos, calçados e diversos outros produtos.
A partir do chamamento público do MMA, diversas associações empresariais de abrangência nacional passaram a negociar com o Governo Federal os termos de um acordo setorial para a logística reversa das embalagens. Após 03 anos, as partes chegaram num consenso e – em 25 de novembro de 2015 – foi celebrado o Acordo Setorial para Implantação do Sistema de Logística Reversa de Embalagens em Geral.
Foram signatárias do acordo inicialmente 20 associações, como a ABIA – Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação, a ABIPECH – Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos, a ABRABE – Associação Brasileira de Bebidas e a ABRAS – Associação Brasileira de Supermercados, todas representando os seus associados.
As associações signatárias passaram a ser denominadas em conjunto como Coalização. O grupo assumiu diversas obrigações ao assinar o acordo setorial, dentre elas, destacam-se: adequação e ampliação da capacidade produtiva de cooperativas, instalação de PEVs – Pontos de Entrega Voluntária das embalagens, compra direta ou indireta de embalagens triadas por cooperativas e programas de educação ambiental.
Além de obrigações, a Coalização assumiu uma meta ao celebrar o Acordo Setorial, qual seja a de propiciar a redução de no mínimo 22% das embalagens dispostas em aterro. O acordo também foi dividido por fases, tendo a Fase 1 duração de 24 meses, e restringido as ações apenas às 12 cidades que foram sedes da Copa do Mundo de 2012 – ano que iniciaram as negociações – e suas regiões metropolitanas.
A fim de cumprir com as obrigações e metas assumidas no Acordo Setorial, a coalizou iniciou a realização de ações para implementação do sistema de logística reversa de embalagens, a partir da captação de recursos junto às entidades signatárias e suas empresas associadas. Em novembro de 2017, expirado o prazo de 24 meses, apresentou ao MMA o relatório final de conclusão da Fase 1.
Concomitantemente à finalização da Fase 1, a Coalização iniciou as tratativas com o MMA para a definição dos termos da Fase 2, que englobará a ampliação da área de abrangência territorial a ser coberta para a implementação do sistema, além da repactuação das metas. Tais definições, até o momento, estão pendentes, ainda não tendo ocorrido o início da execução dessa nova fase.
Na Fase 1, as ações executadas foram viabilizadas a partir de recursos aportados pelas empresas associadas às entidades signatárias do acordo setorial. Isso significa que não foram a totalidade dos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes de produtos e suas embalagens do País que passaram a cumprir a legislação, mas apenas parte deles, gerando uma situação de desigualdade.
Com vistas a sanar esse problema, a Presidência da República publicou o Decreto Federal N° 9.177, em 23 de outubro de 2017. Por meio do referido Regulamento, as obrigações e metas do Acordo Setorial de Embalagens em Geral foram estendidas a todos os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes de produtos e suas embalagens do País, mesmo que não tenham firmado o acordo.
A possibilidade de o Governo Federal implantar a logística reversa por meio de Decreto (Regulamento) está prevista expressamente na Lei Federal N° 12.305/2010, ao art. 33, § 1°, bem como regulamentada pelo art. 30 do Decreto Federal N° 7.404/2010. Trata-se de instrumento do Poder Público para impor a logística reversa, quando não há êxito nas tratativas para celebração de acordo setorial ou termo de compromisso.
Portanto, desde 23 de outubro de 2017, todos os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes – indiferentemente do segmento de atuação (alimentos, bebidas, cosméticos, calçados, etc.) – estão submetidos às obrigações e metas estabelecidas pelo Acordo Setorial para Logística Reversa de Embalagens em Geral, ainda que não tenham assinado o referido acordo.
Por consequência, os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes supramencionados estão sujeitos à responsabilização administrativa, civil e/ou criminal, em caso de descumprimento das obrigações e metas previstas no Acordo Setorial. Passados 9 anos da entrada em vigor da PNRS, os órgãos ambientais competentes estão intensificando a fiscalização e o controle sobre a logística reversa.
3. Consequências do descumprimento das obrigações e metas de logística reversa
É notório que a legislação ambiental brasileira é bastante avançada e protetiva, e essas características impactam nas possíveis consequências àqueles que descumprem das obrigações e metas de logística reversa. Prevalece o sistema de responsabilização nas 03 esferas – administrativa, civil e criminal – podendo a empresa responder concomitantemente a até 03 processos distintos.
Na esfera administrativa, o art. 62, inc. XII do Decreto Federal N° 6.514/2008, prevê multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais), em caso de – segue transcrição do dispositivo – “descumprir obrigação prevista no sistema de logística reversa implantado nos termos da Lei n° 12.305, de 2010, consoante as responsabilidades específicas estabelecidas para o referido sistema”.
Na esfera civil, o descumprimento da logística reversa pode ensejar o ajuizamento de ações judiciais, para que as empresas sejam condenadas a ressarcir os danos materiais e morais causados. As primeiras iniciativas do Poder Público nesse sentido têm alcançado quantias exorbitantes, como no caso do Estado do Mato Grosso do Sul, no qual uma perícia apurou valor superior a R$ 100.000.000,00 (cem milhões de reais).
Tais danos têm sido calculados levando em conta os custos do Poder Público para executar sozinho a coleta, transporte e destinação dos resíduos, dentre outros fatores, como prejuízos ambientais causados pelo descarte irregular das embalagens no meio ambiente (solo, rios, oceano, etc.), danos morais pelas atividades insalubres e degradantes dos catadores, etc. Evidentemente, são valores passíveis de contestação.
O Ministério Público é a principal instituição a utilizar a via de responsabilização civil ambiental, tecnicamente denominada de ações civis públicas, que podem ser precedidas de tentativas de “acordo”, consubstanciados em Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) ou instrumentos assemelhados. Há diversos aspectos controversos a serem debatidos entre as partes, como prazos e formas de cumprimento das obrigações.
No âmbito criminal, a Lei Federal N° 12.305/2010, que instituiu a PNRS, promoveu também alterações na Lei Federal N° 9.605/1998 – Lei de Crimes Ambientais. Passou a ser tipificada como crime a conduta de quem “manipula, acondiciona, armazena, coleta, transporta, reutiliza, recicla ou dá destinação final a resíduos perigosos de forma diversa da estabelecida em lei ou regulamento”, conforme art. 56, § 1°, inc. II.
A pena prevista para o delito supracitado é de reclusão de 01 a 04 anos, e multa. Mas, como se pode depreender da análise do dispositivo legal supracitado, o delito está restrito às atividades com resíduos classificados como perigosos, nos quais não se enquadram a maioria das embalagens recicláveis, como as de alimentos, bebidas, cosméticos, calçados e demais bens de consumo.
Portanto, a responsabilidade criminal no descumprimento âmbito da logística reversa é remota, em se tratando de resíduos não perigosos. Porém, pode advir de outros dispositivos da Lei de Crimes Ambientais, sobretudo quando presente risco de dano ou efetivo dano ambiental ou à saúde pública. Nesses casos, pode abarcar não só a empresa, como também as pessoas físicas que participaram das decisões e ações.
Outro ponto a ser considerado é a competência comum da União, dos Estados e dos Municípios para proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas, conforme art. 23, inc. VI da Constituição Federal. Dessa forma, são múltiplos os agentes públicos que podem exercer controle e fiscalização sobre logística reversa, como as promotorias e os órgãos ambientais federais, estaduais e municipais.
Na prática, o que se tem verificado é uma movimentação crescente do Ministério Público em todo o País, utilizando-se da esfera de responsabilidade civil ambiental como estratégia para o cumprimento da logística reversa pelas empresas. Em alguns Estados também já se verifica a atuação dos órgãos ambientais licenciadores, no âmbito da responsabilidade administrativa, incluindo a lavratura de autos de infração e multas.
4. Alternativas para cumprimento da logística reversa de embalagens
As empresas não signatárias ao Acordo Setorial celebrado em 2015 não integram a Coalização e, portanto, não estão participando do sistema em operação para logística reversa das embalagens. Portanto, caso desejem cumprir a legislação, elas têm a opção de postular o ingresso na Coalização, buscar sistemas coletivos alternativos ou, então, desenvolver seu próprio sistema de logística reversa.
Cada opção supracitada carrega sua própria carga de riscos, custos e oportunidades, cabendo a cada empresa avaliar, conforme suas peculiaridades. No ano de 2018, tratativas de ingresso de associações à Coalização apontaram a necessidade de pagamento de “joia”, isto é, de um valor antecipado para ingresso no grupo, na ordem de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), além dos custos mensais de manutenção.
É importante destacar que o Ministério Público está imputando à Coalização o descumprimento de obrigações e metas assumidas no Acordo Setorial durante a Fase 1, pondo em xeque a eficiência do sistema de logística por ela implementado. Portanto, o ingresso na Coalização como alternativa para o cumprimento da legislação pode ser alvo de questionamentos de parte dos órgãos de controle e fiscalização.
Quanto ao desenvolvimento de sistemas de logística próprios, cada segmento empresarial terá suas características, como volume de embalagens, extensão territorial de distribuição, suporte técnico e jurídico disponível, de forma que a viabilidade econômica e logística desses sistemas deve ser avaliada individualmente. Em alguns casos já estudados, os sistemas próprios se mostraram insustentáveis.
Outra solução que se apresenta são os sistemas de logística reversa coletivos, alternativos à coalização. Muitos desses sistemas permitem inclusive o aproveitamento das ações feitas individualmente pelas empresas – espécie de modelo híbrido, e utilizam tecnologias e soluções de mercado – como sistemas de créditos e de compensação – reduzindo substancialmente os custos de administração do sistema e logística.
Conclui-se, portanto, que cada empresa deve avaliar as peculiaridades de seu negócio, de forma a identificar qual das opções disponíveis para o cumprimento da legislação sobre logística reversa de embalagens que melhor se enquadra, isto é, que lhe proporciona menor custo e melhores resultados. Pode-se, inclusive, adotar soluções híbridas, como sistemas próprios aliados à sistemas coletivos alternativos.
5. Considerações Finais
As obrigações e metas previstas no Acordo Setorial para Implementação da Logística Reversa de Embalagens em Geral foram expandidas para todos os fabricantes, importadores, distribuidores, comerciantes, mesmo que não signatários do referido acordo, conforme Decreto Federal N° 9.177, publicado em 23 de outubro de 2017. A fiscalização e controle dos órgãos ambientais sobre o assunto está sendo intensificada.
Em caso de descumprimento das obrigações e metas supracitadas, as empresas estarão sujeitas ao risco de responsabilização administrativa, civil e/ou criminal, conforme as peculiaridades do caso. Portanto, sugere-se que as empresas estudem as alternativas disponíveis para se adequar à legislação, implementando sistemas de logística reversa de suas embalagens.
A equipe da Ecovalor permanece à disposição para prestar maiores esclarecimentos.
Elias da Silveira NetonnAdvogado, Especialista em Direito AmbientalnnOAB/RS 75.908nnelias@ecovalor.eco.br