Na primeira semana de dezembro de 2019, terminou o primeiro capítulo de um caso que já se tornou emblemático sobre o dever de informação de administradores de empresas privadas quanto aos riscos financeiros associados às mudanças climáticas. A justiça dos EUA julgou improcedente, em decisão de primeira instância, uma ação movida pela Procuradoria do estado de Nova Iorque em face da gigante de petróleo e gás, Exxon Mobil.
O caso teve por questão central a alegação de fraude contra investidores e prestação de informações enganosas por parte da Exxon Mobil, a partir das conclusões de inquérito administrativo que investigou a possível existência de uma ‘contabilidade dupla’ nas projeções sobre a precificação do carbono a serem absorvidas pela empresa.
O possível aumento do custo seria resultante de impostos sobre o carbono e outras imposições regulatórias para a transição a uma economia de baixo carbono que, em seu conjunto, teriam o condão de reduzir a demanda por fontes de energia não-renováveis ou encarecer a extração dos combustíveis fósseis em projetos existentes e futuros.
Para arquitetar a tese central da ação, a Procuradoria de NY confrontou informações sigilosas obtidas no curso do processo com informações públicas que a empresa divulgou entre 2013 e 2016. Esse espaço temporal foi justamente quando a Exxon Mobil, pressionada por investidores e acionistas, passou a publicar uma série de análises e projeções sobre o impacto das mudanças climáticas na rentabilidade de seus negócios e sobre o mercado de energia como um todo. A parte autora sustentou que havia inconsistências entre as informações capazes de caracterizar fraude e outros ilícitos.
Embora a Procuradoria dispusesse de ampla margem jurídica para obter uma responsabilização da ré, já que pela Lei Martin, do estado de Nova Iorque, promulgada em 1921, não é preciso demonstrar dolo ou intenção deliberada de ludibriar ou defraudar investidores, mas tão somente a veiculação de informação em desacordo com os parâmetros legais, o juiz Barry Ostrager entendeu que não ficou comprovada violação à legislação estadual e federal na forma e no conteúdo das informações tornadas públicas a respeito dos riscos climáticos passados, presentes e futuros, e seus respectivos impactos sobre o retorno financeiro dos papéis da empresa.
Como se pode ver, o caso paradigmático NY vs. Exxon Mobil traz à tona o emergente debate sobre a existência e os contornos de uma possível obrigação jurídica das companhias e de seus administradores em considerar – e, ato contínuo, divulgar aos participantes do mercado de capitais – os impactos financeiros decorrentes das mudanças climáticas sobre os negócios. Esta é uma nova perspectiva, que difere da já conhecida obrigação de divulgar informações de contingenciamento de passivos ambientais.
No plano internacional, embora em algumas regiões e jurisdições, como na União Europeia, Canadá, Austrália e Reino Unido, órgãos reguladores tenham recentemente adotado diretrizes para auxiliar empresas e instituições financeiras na divulgação de riscos relacionados à mudança do clima, na maioria dos países ainda não há regras vinculantes sobre o dever de informar os agentes do mercado de capitais sobre tais riscos.
Diante de ausência de dispositivos legais ou regulatórios explícitos, ações judiciais como a exemplificada em Nova Iorque podem se tornar mais frequentes e ditar os parâmetros jurídicos que devem ser levados em consideração pelos administradores na elaboração e divulgação de informações sobre os impactos das mudanças climáticas nas suas organizações.
Quais são, então, alguns dos parâmetros que se pode extrair do caso em tela e outros aplicáveis à realidade brasileira?
No Brasil, conforme a lei societária (Lei 6.404/1976) e de mercado de capitais (Lei 6.385/1976), bem como a regulação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), cabe aos emissores de valores mobiliários e seus administradores divulgar todas as informações que possam impactar na decisão de investimento ou no exercício de direitos, como o direito de fiscalizar a gestão dos negócios, de votar e de ajuizar ações pleiteando o ressarcimento de prejuízos.
Na prática das companhias abertas, informações relevantes sobre o desempenho econômico-financeiro e sobre o andamento das atividades corporativas são veiculadas por diferentes meios e em formatos variados.
Os balanços e demonstrativos financeiros expressam o estado da contabilidade da empresa e trazem análises da auditoria independente e da administração sobre a situação financeira da companhia. Os relatórios anuais, inclusive os relatórios de sustentabilidade, normalmente vão além dos documentos puramente financeiros e apresentam um relato de ações e mesmo do direcionamento estratégico da empresa, assim como números que expressam o desempenho dos negócios sob o viés do impacto social, econômico e ambiental.
Os formulários submetidos à CVM ou outros órgãos reguladores nacionais e estrangeiros dão uma visão abrangente sobre questões financeiras, gerenciais, operacionais e de governança. As conferências com investidores e imprensa propiciam um diálogo direto com membros da alta administração e são oportunas para que estes exponham mais elementos sobre sua visão estratégica para a companhia, além de esclarecer questões pontuais. Por fim, a divulgação de fatos e atos relevantes é o meio adequado para dar conhecimento imediato ao mercado sobre acontecimentos com possível impacto na cotação dos papéis da empresa e no exercício dos direitos pelos investidores.
Voltando ao caso NY vs. Exxon Mobil, uma lição que se depreende é exatamente que cada meio de divulgação, assim como cada tipo de informação, será avaliado tanto individualmente como em seu conjunto na eventualidade de uma companhia se ver questionada junto a uma autoridade judicial ou administrativa no tocante ao cumprimento do dever de informar investidores e acionistas sobre os risco climáticos e suas repercussões sobre a sua saúde financeira atual e futura.
De fato, para formar a sua convicção, o magistrado dos EUA avaliou uma série de documentos públicos da empresa, como relatórios socioambientais, declarações (statements), balanços e demonstrativos financeiros e mesmo estudos conduzidos pela ré sobre o futuro do mercado de energia no contexto das medidas regulatórias para a transição a uma economia de baixo carbono.
Um outro aspecto a ser destacado a partir do caso exposto é que, além de provar que não houve omissão nem deliberada intenção de enganar os investidores e acionistas, as companhias e seus administradores também poderão ser postos à prova quanto à qualidade, a veracidade e a integridade da informação tornada pública sobre a gestão dos riscos climáticos.
Isto vale tanto para projeções amplas sobre o comportamento futuro do clima, exercícios de antecipação dos efeitos de cenários futuros de medidas regulatórias sobre o setor específico em que a empresa atua, bem como para avaliações que relacionam o impacto concreto da mudança do clima nas operações e estratégias corporativas. O caso dos EUA mostra que o rigor e a diligência empreendida em todas essas situações devem ser elevados, embora neste último caso haja implicações adicionais, já que análises contextualizadas transpõem o fenômeno global para a realidade empresarial concreta.
Nesse sentido, em que pese, mais uma vez, a ausência, em países como o Brasil, de norma regulamentadora estatal que imponha explicitamente aos emissores e administradores a divulgação de informações sobre riscos climáticos, o próprio mercado está progressivamente caminhando para a readequação das políticas e práticas no sentido de disponibilização de informações sobre os impactos das mudanças do clima nos negócios presentes e futuros.
Parte desta evolução surge no movimento de investidores institucionais para viabilizar a escolha por investimentos sustentáveis e para atuarem colaborativamente como stewardship nas empresas investidas. A “Climate Action 100+” é um exemplo de iniciativa de investidores cujos membros se comprometem a cumprir com seus deveres fiduciários face os beneficiários, tais como clientes de gestoras de recursos, cotistas dos fundos e pensionistas. Isto implica, entre outras diversas ações, o trabalho junto às empresas investidas para aprimorar a divulgação de informações sobre os riscos climáticos. Mais de 370 investidores, perfazendo um total de USD 35 trilhões de ativos sob gestão, aderiram à iniciativa.
Lançada em outubro de 2019, a plataforma “Investidores pelo Clima” é outro exemplo de mobilização de investidores na temática, desta vez no plano doméstico. A iniciativa tem por objetivo engajar e capacitar investidores profissionais do Brasil para que avancem na descarbonização de seus portfólios.
Iniciativas setoriais ou focalizadas como as exemplificadas acima são, no mais das vezes, desdobramentos ou tentativas de criação de arcabouços alinhados com as recomendações da Força-Tarefa sobre a Divulgações Financeiras Relacionadas ao Clima (Task Force on Climate-related Financial Disclosures, ou “TCFD”). A TCFD, liderada pela indústria, foi estabelecida sob os auspícios do G-20 em 2015 e, após dois anos de trabalhos, apresentou o marco global de referência sobre divulgação de riscos climáticos, contendo princípios e recomendações para o aprimoramento da divulgação financeira relacionada ao clima pelos mais diversos setores e indústrias.
À luz dos sete princípios delineados pela TCFD sobre a divulgação de informações referentes aos riscos climáticos, empresas e instituições financeiras devem disponibilizar informações de caráter qualitativo e quantitativo que preencham uma série de requisitos. Entre outras qualificações, as informações tornadas públicas devem ser consistentes, relevantes, específicas, completas, claras, equilibradas, compreensíveis, confiáveis, verificáveis, objetivas e realizadas no modo e tempo adequados.
É fundamental relembrar que o dever de informar coexiste com outros deveres, como os fiduciários e o dever de gerenciamento dos riscos e boa gestão dos negócios.
A divulgação de informação é necessária para que as partes interessadas entendam melhor o processo decisório interno e para que avaliem se todos os elementos relevantes foram levados em conta na tomada de decisão empresarial. Embora o arcabouço normativo e os precedentes da CVM reconheçam que cabe aos administradores a avaliação da existência ou não de fato ou ato relevante a ser divulgado e o momento da divulgação, cresce a percepção de que nenhum negócio está alheio aos impactos da mudança do clima e que, portanto, há o dever de abordar a temática nas informações que são divulgadas pela companhia.
À medida em que a urgência climática se agrava, com fenômenos extremos ocorrendo com maior frequência e severidade, e diante do início da implementação do Acordo de Paris neste ano de 2020, atores corporativos passarão a ser cada vez mais socialmente conclamados, e juridicamente compelidos, a demonstrar, por meio de ações e informações, as medidas que estão tomando para identificar e agir sobre os riscos que as mudanças climáticas trazem aos seus negócios.
Fonte: JOTA