Para desenvolver tecnologias que melhorem a quantidade e a qualidade de água disponível no mundo, é necessário olhar para as práticas de comunidades indígenas e tradicionais. É o que aponta um relatório divulgado nesta segunda-feira pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco). As Soluções Baseadas na Natureza (SbN) são as mais eficazes e mais baratas, defende o texto. São técnicas que usam ou imitam processos que acontecem na natureza, como a criação de reservas de água em mangues e proteção das áreas alagadas, no lugar de grandes reservas de concreto; ou a restauração do funcionamento natural do solo, em vez do uso de produtos químicos para manter a produção.
Na Índia, por exemplo, mulheres resgataram o uso de estruturas de colheita de água em pequena escala e trouxeram de volta a água para mil aldeias afetadas pela seca. Na Jordânia, práticas tradicionais conhecidas como “hima” — que, basicamente, consistem em deixar a terra “descansar” após uma colheita — ajudaram a recuperar a saúde da bacia do rio Zarqa, onde vive metade da população do país.
No documento, o diretor da UN Water, setor da organização que debate sobre acesso a água, Gilbert Hougbo, afirma que é hora de mudar a forma de fazer tecnologias de gestão hídrica:
— Por muito tempo, o mundo tem se transformado em um lugar onde as melhorias para a gestão hídrica são baseadas primariamente nas infraestruturas construídas pelo ser humano, conhecidas como “infraestruturas cinzas”. Com isso, conhecimentos tradicionais e indígenas, que abrangem soluções mais “verdes”, são constantemente deixados de lado.
Exemplo brasileiro
Uma iniciativa brasileira citada como exemplo foi o programa “Cultivando a água”, realizado no entorno da usina hidrelétrica de Itaipu. Sedimentos que entram no reservatório reduziam a capacidade de armazenamento de água e encurtavam a vida útil da usina, aumentando os custos de manutenção e, portanto, da geração de eletricidade. O projeto envolveu fazendeiros dos arredores para que mudassem suas formas de plantio e até mesmo o tipo de vegetal cultivado, de forma a preservar maior proporção de água no solo, para que os sedimentos não fossem carregados pelos rios. O Oficial de Programas da área de Ciências Naturais da Unesco no Brasil, Massimiliano Lombardo, explica a ação:
— Uma série de iniciativas foi tomada, sendo a maioria soluções baseadas na natureza, como o plantio de espécies nativas em áreas desmatadas ou degradadas. Houve restauração de matas ciliares (vegetação que fica nas margens de rios) e também a recuperação de nascentes. Itaipu tem, além da usina hidrelétrica, área alagada e o parque de Iguaçu. Há um movimento que envolve desde as comunidades locais até as indústrias privadas, como a própria Itaipu, que promovem essa boa gestão da água. Esse é um exemplo importante, porque mostra que o ser humano pode, de fato, trabalhar em parceira com a natureza.
Outro exemplo de sucesso foi no rio Tana, no Quênia, que fornece 80% da água potável da capital Nairobi, gera 70% da energia elétrica do país e ainda irriga cerca de 645 quilômetros quadrados de terras agrícolas. As margens do rio haviam sido utilizadas para agricultura de forma excessiva. Logo, pedaços de terra eram levados pela corrente e ficavam no fundo dos reservatórios usados pela cidade, rio abaixo. Isso fez os custos de tratamento de água da capital ficarem muito altos. Ao longo de dez anos, foi feito um investimento de US $ 10 milhões para o reflorestamento de matas das margens, com vegetação local, bem como o incentivo para que fazendeiros locais passassem a cultivar tiras de grama entre as plantações. Os benefícios econômicos estimados são de US $ 21,5 milhões ao longo de 30 anos.
Cenário em 2050
A diretora-geral da Unesco, Audrey Azoulay, explica a urgência em adotar novas medidas que busquem métodos mais naturais de gerenciamento dos recursos hídricos.
— Se não fizermos nada, cerca de 5 bilhões de pessoas estarão vivendo em áreas com baixo acesso à água em 2050. O relatório propõe soluções baseadas na natureza para uma melhor gestão da água. Essa é uma importante tarefa que todos nós precisamos cumprir, juntos e de maneira responsável, para evitar conflitos — afirma Audrey.
O documento parte de uma base de dados que reúne mais de 300 artigos científicos. Um dos estudos citados no relatório aponta que o uso de soluções baseadas na natureza podem trazer benefícios a mais de 1,7 bilhão de pessoas de quatro mil cidades do mundo. Outro avaliou projetos de desenvolvimento agrícola de 57 países de baixa renda e descobriu que o uso mais eficiente da água, combinado à redução do uso de pesticidas, aumentou o rendimento das colheitas em 70%. Esse novo tipo de técnica é ainda mais necessária no Brasil, já que, de acordo com o relatório, a demanda por água será maior em países em desenvolvimento e em economias que dependem mais da agricultura, dois fatores característicos do perfil do país.
Fonte: O Globo (goo.gl/Hkfusd)